Por Caio Bezarias
(com alguns toques do André)

– E aí, devorador de garotinhas?

Jorge despejou o restante da cerveja pela garganta sem pressa, pois reconheceu a voz e não sentiu nenhum desejo de conversar com seu dono. Aliás, jamais sentira vontade de conversar por mais de um minuto com o sujeito; porém, sair para a noite de São Paulo, com disposição para encontrar todo tipo de coisa, implicava topar com pessoas e situações das mais diversas, agradáveis e desagradáveis, e ele o sabia como poucos habitantes da cidade.

Com extrema lentidão e um ar de desinteresse total, virou-se e encarou Mark. Ser chamado daquele modo por algum de seus amigos humanos, que não conheciam sua verdadeira “espécie”, era uma coisa. Mas ser assim chamado por outro lobisomem dava outros sentidos e possibilidades àquela saudação, tantas que Jorge não permitiu que elas rondassem sua consciência, melhor esperar e ver o que aquele vira-latas tagarela queria.

O conhecido de Jorge tinha a aparência de um homem entre trinta e trinta e dois anos, era alto, magro mas bem constituído, tinha olhos verdes e cabelos lisos que cobriam as orelhas. O sorrisinho bobo que jamais saía de seu rosto juvenil estava bem ali, irritante. – Não sei do que você está falando, cara. Não ando com muita sorte, ultimamente só pego coroas meio passadas.

– E o que me diz daquelas duas coisinhas lindas, aquelas duas gracinhas que arrebatou lá no Darkness e levou para sua casa, há coisa de vinte dias?

Jorge pousou o copo com força no balcão do boteco e o balconista veio imediatamente.

– Outra cerveja e mais um copo – adiantou-se Mark, sem cerimônia – apontou para uma mesa vazia no fundo do apertado salão e para lá foi, sem esperar qualquer sinal de aprovação do outro.

Algo contrariado, Jorge ergueu-se da banqueta e dirigiu um olhar para o intenso vaivém de pessoas de todos os tipos, cores e aparências de sexta-feira à noite da Rua Augusta, pedindo à mãe Gaia que aquela aporrinhação fosse apenas a primeira e mais curta parte do quinhão que ela lhe reservara para aquela noite, em meio tanto movimento e possibilidades.

Ao sentar-se diante de Mark, olhou com a cara de poucos amigos que só um licantropo poderia fazer e somente outro reconhecer e perguntou:

– Como você sabe que acabei com elas? Sou tão importante para você que andou me seguindo, para saber com quem ando e trepo?

– Ha, ha, ha. – Mark agarrou o copo e virou o conteúdo numa tacada só. – Essa foi engraçada. Eu simplesmente estava chegando ao Darkni – como a lendária casa noturna da Bela Vista era chamada pelos íntimos e mais antigos freqüentadores – quando você saía. Estava com um casal de amigos humanos, papeando ao lado da porta e você saiu, cambaleando. Estava tão bêbado e empolgado que não reparava em nada além das duas gotiquinhas que faturou, com razão, aliás: eram duas delícias. Minha amiga Jô, que é bi, suspirou e comentou que você devia ser muito bom de cantada, pois aquelas duas eram famosas lá por serem ariscas e darem bola para bem poucos. Fiquei quieto, pois eu sabia o que elas realmente eram. Depois disso, faz uns cinco dias, eu fui a uma festa fechada, promovida pela turma do Gothsex e uma porção de gente perguntava umas às outras sobre elas, pois tinham combinado com os organizadores de fazerem uma performance com uma adolescente iniciante, para os convidados assistirem, e ninguém sabia delas há vários dias. Quando ouvi aquilo, bem, até um retardado mental deduziria rapidinho o que se passou.

– E daí? O que você tem a ver com isso?

– Realmente, nada. Mas eu estava descendo a rua, indo para o Outsider e vi você. Lembrei do caso e senti curiosidade em perguntar uma coisa.

– Pois pergunte, oras. Não saí de casa para ser interrogado.

– Nervosinho como sempre. Antes de dar fim nelas, não quis saber quem eram e o que foram, não se interessou em conhecer suas histórias? Não lhes concedeu a chance de contarem suas vidas, antes de partirem?

– Elas queriam beber meu sangue! O que eu devia fazer? Sentar no chão e pedir que narrassem suas dramáticas sagas, e em seguida dar conselhinhos sobre como serem boas meninas? Estraçalhei as duas e expus ao sol, sem pestanejar.

– Exatamente como imaginei. Eu faria o mesmo, mas somente após fazer essa gentileza final. Aliás, não entrei para te encher o saco, e sim para perguntar algo: não gostaria de saber quem você exterminou? A história delas?

Jorge virou mais um copo e olhou com genuíno interesse. As relações entre os vampiros e os lobisomens eram difíceis, problemáticas, mas existiam. Assim, um licantropo conhecer a intimidade e a verdade sobre duas bebedoras de sangue era incomum, mas não absurdo. Mas uma besta, no sentido estúpido da palavra, como Mark, saber algo importante sobre duas lindas vampiras como as que ele Jorge tivera de destruir, isso era incrível. A curiosidade mordeu-o, ele afastou o impulso de dizer “não”, que veio ao se lembrar de algumas encrencas em que se metera por simplesmente ficar por perto daquele pulguento bípede por algum tempo. Finalmente disse:

– Vá em frente, mas não se demore nisso. Não tenho a noite toda.

Mark sorriu, fez sinal ao garçom pedindo mais cerveja e começou.

“Miranda na verdade chamava-se Marta. Nome bíblico, posto por uma mãe religiosa e tacanha, que esperava que a filha fosse tão admirável, fiel a Deus e de moral tão firme quanto a xará hebréia. Claro, deu no contrário do que mamãe esperava. Tornou-se uma garota depravada, carente e desesperada. Aos vinte e dois anos já tinha na ficha corrida alguns abortos e um casamento fracassado no qual a casa ficou para o ex-marido. Mais um pouco e colecionava maravilhas como um ex-namorado violento que não a deixava em paz – um traficante que fingia ser engenheiro, com diploma comprado e tudo, para impressionar os amigos de sua família quatrocentona, uma penca de projetos e mais projetos mirabolantes, esboçados com amigos “artistas”, que não davam em nada, e tinha fama de bêbada chorona e grudenta correndo por todas as boates góticas da cidade.

“Aos vinte e cinco anos sentia-se cansada e gasta como uma puta velha. Simplesmente tocava a vida: pagava mal e mal as contas, dava para aqueles que ainda não conheciam sua fama, e tentava esquecer seus problemas enfurnando-se nas casas noturnas e à base de muita bebida e muita maconha.

“Numa fria noite de sábado, ela foi ao Portal, um muquifo metido a ´point alternativo´, que ficava perto do Anhangabaú. Encontrou amigos, bebeu, dançou, até que reparou num sujeito alto e bonitão, de cabelos escuros e longos parado no balcão, sozinho, bebendo e reparando nas pessoas, principalmente nas mulheres. O olhar ansioso, ávido por emoções, misturado à postura firme e segura do resto, chamou a atenção dela. Precisou fazer muito pouco para o cara, em um minuto, se derreter todo, estar fazendo todo tipo de graça e inventando as mais belas frases para ela.

“Trocaram alguns beijos e agarrões, até a hora do muquifo fechar. Já na porta, ela perguntou com voz doce e quente se iriam para a casa dele. Foi aí que o caldo entornou. O sujeito, até então um macho intrépido, tremeu como uma criança assustada, gaguejou. Ela disse que tudo bem, entendeu que ele morava com os pais e que topava um hotelzinho, sem problemas. O cara ficou ainda mais assustado e desfilou uma desculpa ridícula atrás da outra. Ela não entendeu nada. Ter seu desejo por uma foda negado foi deixando ela enfurecida.

 

Parte II

 

“As desculpas dele, a discussão que houve, nada disso interessa. Vamos pular. Meia hora depois, eles estavam sentados nas escadarias de um prédio, contemplando o sereno caindo sobre o vale do Anhangabaú, enquanto trocavam confidências e impressões, ao mesmo tempo em que ela chorava, xingando os homens, farta de si, do mundo, da vida. Por mais de uma vez disse que devia era virar lésbica.

“Nisso, calmamente, uma figura baixinha, de cabelos curtos e roupa muito justa, surgiu sem aviso, parou em frente deles e disse com a maior calma: ´– boa noite, posso ajudar a resolver os seus problemas.?´ – Ninguém menos que Natasha, ou melhor, Natália, uma ex-namorada do cara, encarando os dois com o mais sincero ar de inocência e boa-vontade.

“O cara não entendeu nada, mas foi esperto o bastante para sacar que estava em encrenca da grossa. Marta ficou ainda mais furiosa e mandou a vagabunda sumir, e que podia levar aquele traste com ela. Natália disse muito calma que não estava interessada nele, que era realmente desprezível e idiota, mas nela. Ela estava seguindo o cara, mas desde que ela, Marta, aparecera, ficou muito interessada, principalmente após ouvir toda a conversa entre eles.

“Os dois arregalaram os olhos, sem entender nada. Como assim, nos seguir e ouvir a conversa? Como, se estavam sozinhos até àquele momento?

“E Natasha se pendurou na sacada do prédio, no alto de um poste de luz, na copa de uma árvore, com a leveza e graça de um pássaro. Quando voltou ao chão, diante deles, disse que ouvir falas, à distância, era uma coisa ainda mais fácil para alguém como ela, seus olhos irradiando luz vermelha e os dentes afiados pulando para fora da boca.

“Os dois humanos urraram de pavor. Antes de se moverem um centímetro, ela os paralisou com um gesto, aproximou-se de Marta, envolveu o pescoço dela nos braços e com uma voz irresistível anunciou que lhe daria uma nova vida, que todas as coisas ruins ficariam para trás e que ficariam juntas para sempre, realizando coisas incríveis e se vingando dos homens, um após o outro, noite após noite, da maneira que eles mereciam.

– E após transformar Marta em Miranda, elas sugaram aquele infeliz até o osso. – supôs Jorge.

“O engraçado é que não. Sentiram muito desprezo e também um pouco de pena dele. Ele fora namorado de Natália há vários anos. Era um babaca egoísta e fraco, mas não a ponto de merecer a morte, como ela insistiu. Sugaram sangue suficiente para deixá-lo vivo, mas fraco e doente por um bom tempo, Natália apagou aquela noite da mente dele e elas partiram para sua nova vida, que você encerrou sem remorsos.”

– Como sabe disso tudo?

– Já disse, conhecia as duas. Nem sempre nós e os vampiros somos inimigos, como sabe. Bem, cara, vou nessa. A noite espera nós dois. Pegue. – enquanto virava numa só tacada o copo cheio até a borda, jogou uma nota de cinco na mesa.

Jorge estudou ele por mais um momento e, antes que seu companheiro de sangue partisse, fez mais uma pergunta:

– Por acaso, você sabe por que o cara deu para trás e desistiu? Talvez Natasha não tivesse aparecido, se a trepada tivesse acontecido.

– Tem pessoas que perdem a compostura ao beberem, outras perdem a memória. Marta perdia o controle sobre a libido e a língua, literalmente. Quando estava de pileque e um cara ia beijá-la, muitas vezes ela escancarava a boca e esticava a língua, que se mexia como uma minhoca, antes dos lábios se tocarem, uma cena que assustou muitos homens. Alguns não se importavam e mandavam ver, outros se apavoravam e caíam fora, imaginando o restante. – Uns frescos. Ela era linda e gostosa, e daí que não soubesse beijar?

– Pois é.

– Ah, ei, cara. Uma última pergunta: como sabe até os pensamentos e reações do cara naquela noite?

Mark fez meia-volta, inclinou a cabeça na direção de Jorge e perguntou, numa voz irônica:

– Como você acha que sei tanto sobre o sujeito?

– Era você?!

– Exato. Isso ocorreu há dez anos atrás, antes de eu me tornar parte do Povo. Sabe, Jorge, a mudança, passar a ser um filho de Gaia, causa alguns efeitos colaterais imprevistos, que variam de pessoa para pessoa.. Durante muito tempo, sempre que eu passava no vale do Anhangabaú sentia um desconforto estranho, como se algo quisesse sair da minha cabeça e não pudesse. Aquilo me encucou bastante, passei a evitar a área. Quando passei a ser parte do Povo, tudo que aconteceu naquela noite ficou nítido de novo. Algum tempo depois, topei com elas, por acaso. Ficaram muito nervosas e tentaram dar cabo de mim, mas mostrei que era uma idéia estúpida. Tivemos uma conversa, amistosa até, e ficamos meio amigos. Se quiser, conto como foi.

Jorge se levantou da mesa, deu o dinheiro ao rapaz de olhos caídos e avermelhados que estava no caixa e disse:

– Não, obrigado. Já tive o suficiente de sabedoria sobre as relações humanas e não-humanas por hoje. Que a força de Gaia esteja com você. – e saiu pela porta sem olhar para trás.

Mark observou o outro virar a esquina, riu sozinho e depois retomou seu caminho para a tosca casa noturna de rock que tanto gostava.