Para Ingrid, o lugar escolhido por sua discípula Laura cheirava mal – mesmo para alguém que viu de perto a Peste Negra ferrando toda a Europa, pisou nas cinzas de Roma e praticamente lavou os cabelos com um restinho da água do dilúvio aquele lugar lhe causava repulsa.
Amaldiçoou sua perfeita visão noturna – afinal de contas, para que poder enxergar no escuro? Para se ver cercada por centenas de jovens humanos ensebados de suor, todos vestidos de preto, com maquiagens pesadas (e mal aplicadas) e cabelos engordurados? Para vê-los se amontoando em balcões imundos, lutando na base da cotovelada para apanhar um copo de cerveja vagabunda e quente? Ingrid quase enfiou uma estaca no próprio peito ao se lembrar que o maldito folheto distribuído à porta do Atlantic Club, um antigo bar de strip-tease que nos finais de semana servia de local para festas do sub-submundo gótico (se é que isso existe), berrava OPEN BAR!!
Já a jovem e bela Laura, que por uma concessão suprema de sua tutora havia podido escolher o palco da caçada daquela noite, optando por um dos inferninhos favoritos dos seus tempos pré-Ingrid, seguia extasiada, desfilando pelos dois pisos sujos, sem se importar nem com os esbarrões nas precárias escadas de acesso ao porão da boate – chamado de “palco dois” num eufemismo irritante – muito menos com as passadas de mão, encoxadas e cantadas baratas. Na verdade, a jovem gótica estava a ponto de explodir de alegria – se é que uma gotiquinha afetada da noite paulistana pode ficar tão “alegre” assim. A garota parecia flutuar. Com todas maldições, ela quase ovulava de tanta excitação! Laura, que sempre foi uma patinha feia na escola, a esquisita de plantão, a garota que tinha que se embebedar a níveis hercúleos para conseguir se atracar com o primeiro wanna-be de principezinho das trevas meia-boca que cruzasse o seu caminho, estava se sentindo a predadora, causando cutucões e olhares famélicos por onde quer que passasse. Graças à companhia de sua mestra e senhora, ao módico custo de pequenas e suculentas partes de sua alma, ela passara a ter O poder, se sentindo uma versão jovem e suburbana – bem suburbana, bem suburbana MESMO – da Angelina Jolie.
Para Ingrid, a visão de tamanha lascívia causava asco. Quando a jovem Laura veio para os lados dela, um copo de bebida em cada mão, um cigarro meio queimado pendurado num canto da boca borrada e meio inchada depois de horas e horas de tantos beijos e agarramentos pelos corredores do Atlantic, Ingrid explodiu, irritada, num tom estridente desnecessário.
Enquanto Laura se afastava, Ingrid sentiu suas últimas gotas de tolerância escorrer, e decidiu que já bastava. Sem se dar ao trabalho de avisar sua pupila, que já estava de novo atracada às gargalhadas com duas garotas ainda mais novas e desmioladas do que ela mesma, Ingrid pegou sua bolsa e foi embora, jurando pelos planaltos macedônios da sua infância nunca mais botar os seus belos pés imortais num antro como aquele.
Saindo do Atlantic, Ingrid deixou o ar gelado de uma típica madrugada de junho paulistana envolver seu corpo. Apesar de poluído, o ar fora do inferninho era quase um alívio para ela. Olhou ao redor, se perguntando onde diabos havia se enfiado Kohln, seu motorista e servo mais antigo. Apesar de fiel de uma forma quase canina, unido a ela por laços de sangue que remetiam a algumas gerações de sua própria família, não era raro Kohln aproveitar as horas que sua mestra passava na companhia de Laura para também buscar, a sua maneira, um pouco de diversão noturna. Diversão essa que muitas vezes envolvia altas doses de scotch, correias de couro e mulheres (ou homens) de botas altas.
Na maioria das noites, ela preferia ignorar tais ausências, quase como que incentivando estas pequenas escapadelas – afinal de contas, Kohln é apenas humano, pensava – mas nessa noite uma fria irritação inundou seu peito, como uma maré que subia lentamente. Ingrid, mais do que disposta a descontar sua fúria no primeiro idiota que cruzasse seu caminho, vasculhou sua bolsa atrás de sua cigarreira, uma bela peça comprada em fins do século XIX num fascinante mercado de Istambul – que para ela seria sempre a bela e instigante Constantinopla. Olhar para a cigarreira fez subir ainda mais a maré de sua irritação, tingindo de vermelho seus olhos. Estaria Ingrid quase chorando de raiva?
Enquanto lutava para controlar seu humor, procurava seu isqueiro para acender uma de suas cigarrilhas alemãs, um vício “humano” que ela adotara anos antes de chegar ao Brasil. De repente, uma mão empunhando um Zippo de metal negro escovado, surgiu como que do nada, seguida de uma voz masculina, de tom insinuante:
– Com licença, mas posso acendê-lo para você, cara mia?
Ainda mais irritada por ter sido pega de surpresa, Ingrid se virou para encarar a pessoa que havia conseguido se aproximar dela de forma tão sorrateira. Porém, num breve instante, a surpresa fez evaporar grande parte da irritação, quando Ingrid encarou um homem alto, mais de 1,85m de altura, vestido todo de preto, cabelos curtos cortados à Cesar. Um brilho de reconhecimento passou por seu olhar, e tudo pareceu se encaixar.
– Paolo – disse Ingrid. – Eu devia ter imaginado que ninguém mais seria tão atrevido…
– Ah, belíssima Enrica – respondeu o recém-chegado, com um sorriso sarcástico nos lábios. – Que prêmio delicioso, ver a surpresa em seu olhar. Pelo jeito consegui surpreendê-la, me lembro que você costumava ser mais atenta.
Enrica. Ouvir este nome, que Ingrid adotara tanto tempo atrás, a jogava numa viagem instantânea a outras eras. Era quase como se de repente uma brisa mediterrânea batesse em seu rosto.
Estendendo o Zippo para acender sua cigarrilha, o imortal de aparência bem-cuidada olhava fundo nos olhos de Ingrid, de forma sedutora.
– Só mesmo você para me chamar assim, Paolo. – disse Ingrid.
– E só mesmo você para me chamar de Paolo, più bela Enrica. Neste mundo moderno de aço e vidro, todos me conhecem como P.R., ou Mr. Viggo para a plebe humana.
– P.R. Viggo – disse Ingrid, quase como um suspiro. – Então o famoso P.R. Viggo, que em pouco tempo seduziu a mais alta noite paulistana, é ninguém mais, ninguém menos, que o meu belo italianinho Paolo.
Viggo continuava sorrindo, malicioso, enquanto fitava a expressão no rosto de Ingrid, que tragava, lânguida, sua cigarrilha, sustentando seu olhar. Esses duelos de palavras e olhares sempre foram uma espécie de jogo particular entre eles, velhos amigos, velhos amantes. Ingrid conhecia bem demais aquele sorriso, ligeiro e malicioso, que deixava Paolo com cara de moleque pego aprontando alguma, e sabia muito bem como seria fácil demais cair nesse encanto, mais uma vez.
Paolo ofereceu o braço para ela, conduzindo-a rua abaixo a passos lentos. Por alguns minutos, caminharam em silêncio até entrarem na Rua da Consolação, poucos carros cortando a fria madrugada. Paolo sentia a irritação de Ingrid na ponta dos dedos, pela tensão em seu belo corpo. Ele sabia que, nesses momentos, o melhor a fazer era deixá-la quieta, esperando que a irritação passasse.
Andaram mais alguns quarteirões, sem pressa, naquele passo meio indolente de um passeio a dois, até entrarem em um pequeno bistrô numa travessa da Consolação, já a meio caminho da Av. Paulista. Com o lugar quase vazio, não tiveram problemas para pegar uma mesa num canto afastado, sem ninguém para xeretar na conversa deles.
– Trinta anos, Enrica – disse Viggo, entredentes. – Quase trinta anos na mesma cidade que você…
– E só agora você criou coragem de vir falar comigo? – cortou Ingrid, ainda irritada. – Incrível como você sempre sabe a hora certa de aparecer, não?
– Huum, eu me importo com você, Enrica. – respondeu Viggo, num tom de voz macio, condescendente. – E você sabe que me importo de verdade, mesmo que as coisas entre nós tenham terminado de forma, digamos, pouco amigável. Posso ter me mantido distante, mas sempre acompanhei seus passos, não apenas nessas últimas décadas, mas desde que nos separamos em Munique. Quando foi, bella? 1827, 1830 talvez? Aliás, foi um pouco antes de você começar a usar seu nome atual, não?
– Sim – ela respondeu. Agora era a vez dela sorrir maliciosa – Munique, 1829, seu pequeno canalha. Festival de verão, belas mortais seduzidas por esse seu jeito cafajeste, nosso refúgio reduzido a cinzas e você desaparecido com todo nosso dinheiro.
– Ora, ora, cara mia, será que estamos condenados a sempre que nos encontramos perdermos tempo remoendo meus erros do passado? – disse Viggo, irônico. Ele conhecia Ingrid bem demais, sabia de sua personalidade forte, impositiva, e por isso mesmo reconhecia o comentário meio divertido, meio amargo como o que era – apenas um cutucão, uma mera provocação sem sentido.
As horas passaram voando enquanto o antigo casal conversava sobre as décadas que haviam passado juntos ao longo do século XVIII e começo do XIX, relembrando histórias, pontuando pequenas aventuras e incidentes. Depois de um tempo, toda a irritação de Ingrid já parecia dissipada. Viggo sabia como poucos que cordas tocar, como conduzir a conversa de forma a deixá-la relaxada, à vontade. A cada lembrança, Ingrid ia mais e mais se soltando, abaixando a guarda e se permitindo rir como há muito tempo não fazia. Viggo sabia o valor do sorriso dela, sabia como era raro que ela se permitisse um momento de descontração. – Com mil demônios, como ela fica linda sorrindo! – pensava o vampiro.
– …e como era trabalhoso manter aquela sua mania das rosas negras… – disse Ingrid, entre risadas.
– Negras não, rubras, bela…rubras, mas tão escuras, tão profundas que à noite pareciam mesmo negras.
– E você as escolhia uma a uma, correndo riscos desnecessários para comprá-las ou mesmo roubá-las, tudo para manter sua marca registrada…
A ironia na voz da vampira soava como música para seu antigo amante, que saboreava o antigo jogo.
– O que é a vida sem estilo, Enrica? Uma rosa, uma musa temporária, toda minha atenção até o final…
– Até o final do seu interesse por elas, não? Tanta paixão, tanta atenção, às vezes por horas, às vezes por semanas…não sei dizer quais eram as mais afortunadas…
– Seja como for, minhas rosas continuam sendo uma marca de privilégio e atenção.
– Continuam? Devo então ficar atenta para o aparecimento de uma dessas rosas sobre a tampa do meu caixão? – sugeriu Ingrid, com prazer.
– Não, não…- respondeu Viggo – Já faz tempo que troquei as rosas por cartas de baralho especiais, feitas sob encomenda, um ás de um lado, a estampa da rosa rubra no verso. Facilidades do mundo moderno, cara mia.
A noite chegando ao fim, Viggo olha distraído para o relógio enquanto Ingrid gira de forma displicente a taça de vinho ainda pela metade, observando seu conteúdo, com os pensamentos distantes.
– E essa nova garota? – perguntou Viggo. – Laura, é isso?
– Sim, Laura – respondeu Ingrid, abaixando os olhos para o copo entre suas mãos. – Nem eu mesma sei por que ainda perco meu tempo andando com uma putinha dessas. Como posso suportar um buraco escuro e barulhento, uma amostra tão vulgar do pior deste novo século? Eu, que já vivi tantas coisas? Que merda comparar essa molecada que parece adorar ser feia e suja trepando como coelhos numa dark room de chão melecado com as coisas que já vi…
– Difícil saber, não? Quem sabe o que você enxerga nela… – disse Viggo, cortando as divagações de Ingrid.
– Como assim? O que você está querendo dizer…
– Por que você se irrita tanto com ela, Enrica? Você mesma já falou, essa menina não passa de uma dessas punkettes imbecis… – deixando o assunto no ar, Paolo sacou seu isqueiro, estendendo-o para acender mais uma das cigarrilhas de Ingrid.
Ingrid tragou fundo, irritada. Soprou com força a fumaça para o alto, encarando Viggo – Não sei que merda você está falando, Paolo!
– Não sabe mesmo, amore? Você parece estar falando sobre ela, mas também pode estar falando sobre tantas outras, não? – sussurrou entredentes Viggo, porém num tom tão sinistro que era quase como se esmurrasse a mesa. – Pode estar falando sobre a bela Carmen, la ballerina, sua pupila pelas ruas daquela provinciana São Paulo em, quando mesmo? 1937, 1938? – Viggo prosseguiu, encarando Ingrid. – Ou pode estar falando da le petit Julie, sua mais deliciosa e memorável discípula nas ruas tomadas pela Peste Negra de Paris! Ou será que quem se sobrepõe nos traços de Laura é Cornelia, a jovem romana que assistiu ao seu lado ao deleite nefasto de Nero?
Ingrid parecia tornada em pedra, exceto pelo olhar fulminante, a pira de sua fúria reacesa e aumentada, perante a súbita confrontação de Viggo. – Você está passando de todo e qualquer limite, seu merdinha carcamano…
A gargalhada de Viggo cortou a torrente de palavrões de Ingrid. – Sim, um merdinha carcamano! Era isso mesmo o que eu era até conhecê-la, Enrica, um carcamanozinho de merda, um moleque sem a menor noção do mundo, mas ainda assim eu era exatamente o que você precisava naquela época! Ou melhor dizendo, quem você precisava!
Ingrid se levantou, dando a volta na mesa para sair de perto de Viggo, que segurou suave seu braço, sabendo que não seria a força física que a impediria de sair porta fora, desaparecendo na noite.
– Enrica…per favore…eu estive no asilo…– sussurrou Paolo, retomando o tom ameno de minutos antes.
Ao ouvir aquilo Ingrid escorregou de volta na cadeira, como se derrotada. Lentamente, levantou o olhar, para encarar seu antigo amante.
– Eu estive com Carmen na semana passada, Enrica. Na verdade, tenho a visitado de tempos em tempos desde que a descobri.
– Você não tinha esse direito, Paolo – esbravejou Ingrid, encarando afinal o vampiro, com lágrimas de sangue escorrendo dos seus olhos. – Como ninguém me contou de suas visitas…
– Ninguém sabe de mim, ninguém me vê. É fácil, eles a largam por horas na varanda, ela parece gostar do ar da noite, basta saber esperar. E se alguém me vê, com um pequeno toque da mente faço com que me esqueçam.
Ingrid parecia sem reação, sustentando irritada o olhar de Viggo.
– Ela deve ter sido mesmo uma bela jovem nos seus tempos, aqueles olhos claros, quase como duas pequenas contas de cristal azul. Às vezes eu a acompanho ao seu quarto, me sento ao lado de sua cama e seguro sua mão, enquanto ela me conta as histórias dos tempos antes da Guerra, quando alucinava os homens com sua beleza, e com os truques de sedução aprendidos de sua amiga europeia – seria você, Enrica?
Ficaram algum tempo atolados num silencio desconfortável, os minutos se arrastando, Ingrid tiritando de irritação, encarando o olhar fixo de Viggo.
– Você mesma me contou as histórias, cara mia. Carmen, Julie, Cornelia, agora Laura…você não percebe? Ou você não quer perceber?
– Eu não sei do que você está falando, seu desgraçado… – disse Ingrid, quase num sussurro inaudível, encarando Viggo com os olhos vermelhos, injetados de fúria e dor.
– Ah, cara Enrica, eu me importo com você, e por me importar tenho acompanhado seus passos. Você não percebe? Você REALMENTE não percebe? Você precisa delas pra se lembrar, minha amiga…elas são todas tão parecidas entre si, e todas tão parecidas com quem você devia ser, 3.500 anos atrás. Jovens, impulsivas, cheias de vida e de uma energia que lhes embota os sentidos, não deixando que percebam como a vida delas é cheia de possibilidades. E através delas, você revive a si mesma, a jovem Átala…era esse seu nome, não? Era esse seu nome quando era apenas uma jovem camponesa macedônia, destinada a uma vida vulgar, sem brilho, antes que uma estranha cortesã a arrebatasse e a transformasse, mudando sua vida da mesma maneira como você faz com cada uma delas – a única diferença é que sua antiga mentora, cansada de viver sozinha, a tornou imortal.
Ingrid não susteve mais o olhar de Viggo, fechando os olhos como se mergulhasse dentro de si mesma. Respirando fundo, lágrimas vermelhas molhando suas bochechas, a vampira se sentia envelhecida, alquebrada, como se a solidão que tentara negar por séculos e séculos a alcançasse num devastador golpe. – Átala… – disse Ingrid. – Como era jovem…
Instantes depois, abriu os olhos apenas para ver a sua frente a cadeira vazia, e uma carta de baralho com a estampa de uma rosa rubra, quase negra, deixada sobre a mesa. Viggo se fora, mas o recado estava dado.